Arte, IA e nossa relação com o mundo

Foto da leta de um computador exibindo o filme do Studio Ghiblio A viagem de Chihiro

Recentemente, surgiu uma trend nas redes sociais que consistia em transformar fotos em desenhos no estilo do Studio Ghibli por meio da IA.

Há, sem dúvida, muitas problemáticas envolvidas na questão, que gerou um burburinho sobre apropriação indevida de direitos dos artistas, substituição do trabalho humano pela IA e tudo aquilo que está sendo discutido desde 2022.

Mas eu não quero falar sobre nada disso hoje, ainda que sejam questões importantes.

Na verdade, fiquei impressionada com a facilidade e velocidade com a qual foi possível elaborar aquelas imagens.

Desenhar dá trabalho. Um desenho pode demorar dias, semanas e até meses para ser feito. Isso sem falar nos muitos anos de aprendizagem e aprimoramento da habilidade em si. Hoje em dia, porém, conseguimos fazer isso em segundos apertando um botão.

Não é ótimo?! Por um lado, sim. Mas será que não estaríamos perdendo alguma coisa?

Por coincidência, recentemente assisti ao anime Blue period que fala sobre o desejo de um jovem estudante de se tornar artista e entrar em uma faculdade de artes. Em uma das cenas, ele dá a sua mãe um desenho que fez dela e lhe diz que o processo de desenhá-la o fez notar suas mãos desgastadas pelo trabalho doméstico e o fez refletir sobre como ele não só não havia percebido o quanto ela se esforçava, quanto nunca realmente dera valor ao que ela fazia.

Foi o cuidado e a dedicação ao desenhá-la, um olhar diferente para a realização de seu desenho, que o levaram a enxergar algo novo, a expandir a sua visão de mundo e a mudar sua relação com a mãe.

E isso não acontece em tantas outras situações na vida?

Vou compartilhar um exemplo que sempre gosto de citar, porque mudou a minha relação com a leitura.

Eu era uma leitora rápida. Até os meus vinte e poucos anos, não demorava mais do que uma ou duas semanas lendo um livro. Até que me interessei por um livro diferente do que costumava ler, uma história menos conhecida de Fitzgerald, chamado Suave é a noite. Não gostei da leitura e, por isso, ela se arrastou por meses. Os personagens não eram agradáveis, nem o desenrolar da narrativa, com muitos acontecimentos que me incomodaram. Mas não só li o livro até o fim em um período de alguns meses, como escrevi um diário de leitura sobre ele e uma resenha.

No fim da leitura, mesmo não tendo gostado do livro, me senti próxima dos personagens. Passado-se anos, ainda lembro deles e de algumas situações do livro. Lembro, sobretudo, da minha sensação ao longo da leitura e de lentamente imergir e me envolver no enredo. Aquela experiência deixou uma marca profunda em mim, assim como outros livros que passaram a me acompanhar por meses, enquanto do livro que li em dois dias no início deste ano, já não consigo me recordar direito.

Posso dizer o mesmo sobre livros teóricos que apenas li, em comparação àqueles que estudei, trabalhos que escrevi para a faculdade com mais, outros com menos dedicação, fotos que tirei, entre tantas outras experiências. Todas que agora podem rapidamente ser feitas pela IA. Ela gera texto, imagens, vídeos. Gera nossos trabalhos, nossos posts, nossos e-mails, nossas fotos.

É verdade que ela é de grande ajuda nos momentos em que estamos cansados, sobrecarregados, apressados, desinteressados. Mas não estamos sempre assim ultimamente?

Talvez ela seja útil naquela tarefa banal e corriqueira, mas será que não poderia ser a realização dessa tarefa que, eventualmente, provocaria uma reflexão ou uma mudança na sua relação com o trabalho, com a comunicação ou com o mundo?

Usamos a IA para poupar o nosso tempo, como se fosse um ganho para nós, mas será que, ao mesmo tempo, não estamos nos poupando de viver a vida e empobrecendo nosso cotidiano? Será que a aceleração não retira a riqueza de detalhes de nossas experiências? E, ao mesmo tempo, nos impede de refletir sobre os “problemas” que agora são solucionados em dois segundos?

O que nos resta após o curto-circuito permitido pelo uso da IA?


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