
Resenha
“Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras, nos céus, passava eu, a cavalo, sozinho, por uma região singularmente monótona – e, quando as sombras da noite se estendiam, finalmente me encontrei diante da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi – mas, ao primeiro olhar lançando à construção, uma sensação de insuportável tristeza me invadiu o espírito. Digo insuportável, pois aquele sentimento não era atenuado por essa emoção meio agradável, meio poética, com que o nosso espírito recebe, em geral, mesmo as imagens naturais mais severas da desolação e do terrível. Contemplei a cena tinha diante de mim – a simples casa, a simples paisagem característica da propriedade, os frios muros, as janelas que se assemelhavam a olhos vazios, algumas fileiras de carriços e uns tantos troncos apodrecidos – com uma completa depressão de alma, que não posso comparar, aproximadamente, a nenhuma outra sensação terrena, exceto com a que se sente, ao despertar, o viciado em ópio, com a amarga volta à vida cotidiana, com a atroz descida do céu. Era uma sensação de alguma coisa gelada, um abatimento, um aperto no coração, uma aridez irremediável de pensamento que nenhum estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime. Que era aquilo – detive-me a pensar -, que era aquilo que tanto me enervava, ao contemplar a Casa de Usher?”
Com essa descrição sombria somos apresentados ao tom da narrativa e à casa que nomeia o conto. Prestem bastante atenção na forma como a propriedade é descrita, pois todos os acontecimentos que se sucedem à ida de nosso narrador sem nome à casa estão indicados nas palavras deste parágrafo inicial. Boa coisa não vem por aí!
A casa era habitada pelos irmãos Roderick e Madeline Usher. Ambos gravemente doentes. Roderick sofria de um mal familiar incurável e de uma doença nervosa que tornava seus dias insuportáveis, pois era extremamente sensível a uma grande variedade de sons e sensações que, portanto, deveria evitar. Madeline estava a beira da morte, sofrendo de uma doença chamada catalepsia, caracterizada por um quadro de rigidez muscular semelhante ao da morte que poderia durar horas. Este também foi o motivo pelo qual Roderick mandara uma carta ao nosso narrador – seu melhor e único amigo – solicitando sua visita. Roderick acreditava que a presença de seu amigo de infância poderia proporcionar algum conforto para a tortura que vivia diariamente e a consciência da iminência de sua morte.
A princípio tudo parecia correr como o anfitrião havia planejado. Ele e o narrador passavam o dia engajados nas mais diversas atividades – pintura, música, leitura, poesia -, mas Roderick emprestava um tom sombrio a tudo o que tocava, deixando seu amigo levemente desconfortável.
“Para mim, ao menos nas circunstâncias que então me cercavam, surgia, das puras abstrações que o hipocondríaco conseguia lançar em suas telas, um terror intenso e intolerável…”
Aos poucos ele compartilhou com o amigo sua crença de que a casa era, de algum modo, viva e influenciava o estado físico e psíquico dele e de sua irmã. Nosso narrador não dá crédito às ideias de Roderick, o considerava excessivamente hipocondríaco e imaginativo, mas a semelhança entre os estados da casa e de seus moradores era inegável.
Com o evoluir da narrativa, a impressão que temos é a de que Roderick estava certo. A casa parece sugar a essência de seus moradores, cuja aparência e psiquismo se deterioram com o decorrer da história, como se isso pudesse sustentar sua estrutura antiga e abalada. Apesar dos esforços do narrador, um evento fatídico acontece e, a partir de então, o clima pesado e assombroso que domina a história se intensifica a cada parágrafo até culminar na desgraça de todos os personagens.
O conto nos prende do início ao fim. Poe cria um clima opressivo que nos obriga a terminar a leitura, pois um acontecimento se soma ao outro e nos engaja e arrasta cada vez mais para o cerne da narrativa. O que há, afinal, de tão estranho com a residência dos Usher? É à lá Sherlock Holmes que teremos que buscar as respostas, escondidas nas entrelinhas e nas palavras do texto, mas de forma alguma entregues mastigadas ao leitor.
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Seção pós-leitura
O estilo de Poe

Além de escritor literário, Poe também escreveu alguns ensaios sobre teoria literária nos quais apresentava e comentava técnicas e estilos de escrita. Em seu ensaio A filosofia da composição, Poe comenta sobre a criação do efeito único. Na concepção do autor, todas as obras – com exceção dos romances – deveriam ser curtas e voltadas para a criação de um único efeito no qual cada palavra teria influência e relevância.
Se analisarmos o conto A queda da casa de Usher, veremos que ele é um excelente exemplo da concepção de Poe. É um conto que pode ser lido de uma só vez, na qual todas as palavras somam-se e ampliam cada vez mais o efeito sombrio e aterrador da narrativa, construindo aos poucos o efeito impactante da cena final.
Espelhamento
Um outro recurso que aparece diversas vezes no conto é o que optei por chamar de “espelhamento”. Logo na abertura da obra temos o mais claro exemplo deste recurso: o estado decrépito da casa reflete o estado de seus moradores.
Mas este está longe de ser o único momento em que o mestre do terror utiliza tal recurso. Mais a frente no conto, somos apresentados a um poema que Roderick, o dono da casa, compôs para acompanhar suas improvisações musicais. Seu nome é O palácio assombrado e a temática central versa sobre um palácio outrora radiante e habitado por anjos bons que agora não passava de uma sombra, habitado por vultos e envolvo em uma névoa melancólica.
No poema, Roderick afirma que o palácio era habitado pelo rei Pensamento, que havia sido deposto por seres maus, trajados de luto. O uso da palavra “pensamento” é curioso e, a partir da ideia de que o poema pode funcionar como um espelho do próprio Roderick, podemos levantar a hipótese da deposição do rei ser uma metáfora para o enlouquecimento, e os seres maus trajados de luto uma metáfora para a melancolia que assolava o personagem e para seus pensamentos envolvendo tanto a sua morte quanto a de sua irmã.
Por fim, o terceiro momento neste pequeno grande conto no qual o espelhamento aparece é na leitura do livro Mad Trist, realizada pelo narrador na tentativa de acalmar os nervos do abalado Roderick. As passagens lidas em voz alta pelo narrador são intercaladas com barulhos reais nas imediações da casa, de modo que a história parece viva. No livro, um dragão deveria ser derrotado, o que leva o leitor do conto a supor uma ameaça também na própria casa que deveria ser igualmente combatida e estaria se precipitando para o quarto no qual Rodrick e o narrador se encontravam.
Hipóteses e teorias
Agora vamos para a pergunta que não quer calar: por que raios Roderick sepultou sua irmã viva?!?
Aqui há uma teoria complexa, mas muito interessante, que encontrei neste trabalho aqui. De acordo com o autor, haveria uma maldição na família Usher devido aos casamentos consanguíneos e incestuosos da linhagem em prol da manutenção de seu patrimônio.
A “peculiaridade” dos casamentos incestuosos da família Usher foi mencionada pelo narrador logo no início do conto:
“Tive também notícias do fato, bastante notável, de que do tronco da estirpe dos Usher, por mais antigo e glorioso que fosse, não surgira nunca, em tempo algum, qualquer ramo duradouro: em outras palavras, sabia que a família se perpetuara sempre em linha direta, salvo insignificantes e passageiras exceções. Semelhante deficiência […] era aquela deficiência de linhagem colateral, talvez, e a consequente e direta transmissão de pai para filho, do patrimônio e do nome, o que havia por fim, identificado a ambos, acabando por unir o título original da propriedade à arcaica e equívoca denominação de ‘Casa de Usher, denominação que parecia incluir, no espírito dos que a usavam, tanto a família como a mansão.” – p. 9
Vale ressaltar que o termo “linhagem colateral” mencionado na passagem refere-se a parentes que têm um ancestral em comum, como irmãos. Ora, Roderick e sua irmã preenchiam o requisito da linhagem e eram os últimos descendentes da família Usher. Sustentar a casa, seja a residência seja o nome familiar, implicaria em manter a tradição viva e estabelecer relações incestuosas com a irmã. Ambos os irmãos são vítimas da maldição que seu antepassados lhes legaram.
É de se imaginar que Roderick não quisesse o fim de sua linhagem. No entanto, tal desejo conflitaria com o ato que ele deveria cometer para perpetuá-la. Em alguns momentos do conto Roderick parece dar indícios ao narrador de que ele temia algo, sem expressar exatamente o quê, mas que podemos interpretar como as consequências da escolha de um dos caminhos da bifurcação na qual se encontrava:
“- Morrerei – disse-me – devo morrer desta deplorável loucura. Assim, assim, e não de outra maneira, é como devo morrer. Aterram-me os acontecimentos futuros, não por si próprios, mas pelos seus resultados. Tremo ao pensar mesmo no mais trivial incidente, pelo efeito que possa ter sobre esta intolerável agitação de minha alma. Não receio, efetivamente, o perigo, exceto em seu efeito absoluto: o terror. Neste estado de excitação… nesta lamentável condição… sinto que chegará logo o momento em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com o horrendo fantasma: o medo” – p. 13
Roderick afirma que deve morrer. Parece que sua escolha estava feita: morrer implicaria em sepultar a irmã, em não ceder à maldição e ao desejo. Entretanto, o personagem também afirma que treme ao pensar em algum incidente, seria uma referência ao incesto? Apesar de ter uma posição, Roderick parece dividido, incerto de que conseguiria manter-se firme em sua resolução.
O sepultamento da irmã poderia funcionar, então, como uma forma de afastá-la dos impulsos de Roderick, que sepultaria seus desejos junto com a irmã e evitaria a perpetuação da maldição familiar. No entanto, como lemos no conto, o sepultamento levaria inevitavelmente ao fim da linhagem familiar, à queda da casa Usher.
Para saber mais
Se gostou deste conto do Poe e quer saber mais sobre a vida e obra do autor, pode se interessar pela biografia dele, que, além de trazer informações biográficas, também aborda seus contos e poemas mais famosos.
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