Resenha: Teogonia – Hesíodo

A mitologia grega surgiu há quase três mil anos, por volta de 700 a.C.! É incrível pensar que algo tão antigo encontra-se vivo e bastante presente nos dias atuais. São diversas referências em livros, filmes, séries e até mesmo em jogos de videogame (quem mais jogou God of War?!). Mas você conhece a história completa do surgimento de todos os deuses e de seu universo, o cosmos grego? É disso que trata o poema de Hesíodo Teogonia, também conhecido como A origem dos deuses. É uma das obras mais antigas a tratar sobre o universo mitológico grego, junto com Ilíada e Odisseia de Homero, contemporâneo de Hesíodo.

Um pouco de história

Mesmo aos acostumados ao gênero textual da poesia, Teogonia tem uma forma muito específica, datada de uma época na qual o alfabeto ainda não existia e, por isso, os poemas eram compostos através de fórmulas que facilitavam a memorização. Naquele passado longínquo, os que proclamavam os poemas chamavam-se aedos – palavra que se traduz por “cantores” – e cultuavam a deusa Memória e as Musas (Palavras Cantadas), que lhes agraciavam com o dom da composição lírica.

Foram as Musas, como aprendemos em Teogonia, que ensinaram a Hesíodo o canto que desvela a origem dos deuses. O nome do poeta significa “o que lança cantos”. Curiosa coincidência, não?! Como se Hesíodo tivesse sido predestinado desde o seu nascimento a ser um poeta! A verdade é que não se sabe se ele existiu ou não. A noção de autoria não existia antes da invenção do alfabeto. Com isso, Teogonia, que surgiu na forma de canto, tornou-se texto escrito posteriormente e sua autoria foi atribuída ao nome do poeta mencionado no próprio canto.

O poema versa, essencialmente, sobre três grandes elementos: a criação do mundo (cosmogonia), a criação dos deuses (teogonia) e a guerra de Zeus e seus aliados contra Cronos e os demais titãs, garantindo a ascensão de Zeus ao poder ordenador de todo o cosmos.

A criação do mundo e dos deuses

A criação do mundo não se distingue da criação dos deuses, pois para o grego antigo o campo dos deuses era imanente, ou seja, não se separava da matéria, eles eram o próprio mundo e tudo que nele habitava. Como narra Hesíodo, o mundo surgiu junto a quatro deuses primordiais que deram origem a todo o resto: Caos, Gaia, Tártaro e Eros.

“Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça no Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.” – p. 109

Após o surgimento dos deuses primordiais, a Terra gerou o Céu (Urano), as Montanhas e o Mar. A partir daí, formaram-se três linhagens divinas: os descendentes de Caos, os do Mar e os do Céu. Os descendentes de Caos (com exceção de Éter e Dia) são potências tenebrosas de negação da vida e da ordem, os males da humanidade. Os descendentes do Mar são marcados por características que também poderíamos atribuiu ao mar: variabilidade, transformação, ausência de forma e imensidão. Já os descendentes do Céu são caracterizados pela inteligência, lucidez e exercício do domínio. É do Céu a linhagem de Cronos e Zeus.

Um dos principais componentes de Teogonia, que se relaciona diretamente com o que estamos falando, é o Mito de sucessão. O poema narra como Cronos destronou Urano (Céu) e, posteriormente, como Zeus destronou Cronos, assumindo permanentemente o posto de ordenador do cosmos. Jaa Torrano, tradutor da obra e estudioso do assunto, aponta a existência de três fases cósmicas, relacionadas às três linhas (Urano, Crono e Zeus), cada qual com sua própria ordem de funcionamento.

O reinado de Zeus

Zeus assume o poder através de uma grande guerra contra seu pai Cronos, chamada Titanomaquia. Ele liberta os Ciclopes aprisionados, irmãos de Cronos, que lhe agraciam com o que se torna sua mais poderosa arma: o raio. Assim, Zeus e seus irmãos batalham contra Cronos e os demais Titãs e vencem, prendendo os derrotados no Tártaro.

Uma última ameaça assolava o reinado de Zeus: Tifeu, filho de Gaia e Tártaro, podendo ser considerado a contra imagem de Zeus. O deus luta contra Tifeu, derrotando-o e, por fim, estabelece a ordem cósmica vigente no mundo grego antigo, distribuindo diversas honrarias entre os deuses e casando-se diversas vezes a fim de consolidar seu reinado.

A experiência de leitura

Não foi uma leitura fácil. Senti muito estranhamento em relação à estrutura do poema, mas consegui me habituar com o passar do tempo. O texto é muito imagético e sem dúvidas poético. O que mais gostei foi ter descoberto a origem de diversos deuses que já conhecia e gostava justamente por ter tido o contato com mídias da cultura contemporânea que os abordavam.

Eu diria que ter conhecimento da mitologia ajuda ao longo da leitura. Quanto mais se conhece, mais é possível associar as novas informações ao invés de ter que memorizar tudo. E, olha, são muitos nomes!! O panteão grego é gigantesco e, no poema, descobrimos a origem de tudo e todos. Papel e caneta podem ser aliados, sugiro anotar os nomes à medida em que surgem e elaborar uma árvore genealógica. É incrível ver deuses conhecidos se conectando entre eles ou com deuses novos que não conhecíamos. Confesso que foi uma das partes mais emocionantes da leitura! Se você não é do tipo que gosta de parar de ler para anotar as coisas, é possível encontrar facilmente árvores genealógicas pela internet que irão te ajudar a se situar em um momento pós-leitura. Foi o que eu fiz. Outra coisa que me ajudou bastante foram os materiais de apoio que deixarei ao final do post, não deixe de conferir!

Vale dizer que Teogonia, apesar de ter sido uma leitura maravilhosa e bela, não é um poema que eu indicaria para todo mundo. Acho que simplesmente ter interesse pelos mitos gregos não é o suficiente para manter alguém engajado nessa leitura difícil. Neste último caso seria melhor um primeiro contato com livros de linguagem mais simples como O livro de ouro da mitologia. Porém, se já existe um alicerce ou se há vontade de ler outros livros de miologia grega, eu recomendo fortemente iniciar por Teogonia, mesmo sendo uma leitura um pouco incômoda pela dificuldade. Atualmente estou lendo Prometeu acorrentado, uma tragédia escrita por Ésquilo baseada na história de Prometeu contida no poema de Hesíodo. Posso dizer que a leitura do poema me ajudou muito! Eu já havia lido a tragédia uma outra vez, mas admito não ter gostado. Agora, consigo ligar diversos pontos com a leitura prévia e com acontecimentos na mitologia que sei que irão se suceder à narrativa da tragédia, o que tornou a leitura muito mais dinâmica e interessante.


Ficha técnica do livro

Título: Teogonia: a origem dos deuses

Autor(a): Hesíodo

Tradutor(a): Jaa Torrano

Editora: Iluminuras

Ano: 2015

Nº de páginas: 159

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Sobre a edição

Atualmente temos duas edições de Teogonia no mercado editorial brasileiro: a da editora Hedra e da editora Iluminuras, que foi a utilizada por mim. Eu não conheço a primeira edição para fazer um comparativo entre ambas, porém li alguns comentários sobre a simplicidade da introdução e sobre como ela ajudava no entendimento do poema. A edição da Iluminuras tem, talvez, uma das “introduções” mais completas que já vi em toda a minha vida, isso porquê mais do que uma introdução, o tradutor Jaa Torrano realiza um estudo da obra. Mas isso é bom e ruim. Vamos lá aos motivos:

Pontos positivos: sou estudante de mestrado. Estudo formalmente a Grécia Antiga há uns três anos através de uma disciplina que curso na UERJ chamada “Psicanálise e Literatura”. Para mim, que sou do meio acadêmico, a leitura do estudo foi sem igual! Importante não apenas para os meus estudos relacionados à disciplina, como para meu projeto de mestrado, me dando diversas ideias. Fiz muitas anotações no texto e colei muitos post-its rs. Mesmo assim, em alguns momentos achei a linguagem um pouco complexa, me lembrando Heidegger, autor no qual ainda não me aprofundei e que é famoso por sua complexidade.

Se você é do meio acadêmico e estuda algo que ao menos tangencie a temática, ou até mesmo tem muita curiosidade em se aprofundar nos assuntos, essa edição é para você! Completíssima. Torrano explica o poema ponto por ponto e traz muitas contribuições à leitura. Se aprofunda no papel de cada deus, nas repercussões dos acontecimentos narrados para a estruturação do cosmos grego e no contexto das temáticas do poema em meio ao pensamento grego arcaico. Tenho certeza de que se eu não tivesse tido contato com essa introdução não teria ficado tão maravilhada com o poema. Além disso a tradução é excelente!

Pontos negativos: o que é positivo para um, é negativo para outro. A linguagem mais complexa, um tanto filosófica, pode ser uma barreira até se chegar ao poema. O estudo é longo e demanda muito tempo de leitura e entendimento e, se sua intenção é ler mais para conhecer a origem dos deuses e não se aprofundar em cada detalhe deste mito cosmogônico, recomendo pesquisar mais sobre a edição da Hedra, pois a introdução parece ser, de fato, uma introdução. Claro, é sempre preciso levar em conta além da introdução uma boa tradução, o que deverá ser averiguado também ao consultar outras edições.

Por fim, vale dizer que é uma edição bilíngue, ou seja, temos o original grego à nossa disposição. Infelizmente não sei ler grego, o que é uma pena, mas fica a dica para quem sabe. Esta edição bilíngue também conta com o original e a tradução lado a lado: grego nas páginas esquerdas e português nas direitas, o que torna a comparação muito mais fácil.


Material de apoio e leituras complementares

Ao enveredar por uma leitura difícil, procuro sempre alguns materiais que possam me auxiliar antes, durante e após a leitura. Gosto de me contextualizar sobre o período no qual a obra foi escrita, sobre a vida do autor e se havia alguma intenção na escrita da obra, bem como sobre os temas abordados e desdobramentos para além do conteúdo escrito. Se tornou algo tão bacana e com resultados tão positivos que costumo fazer com qualquer livro com o qual eu tenha contato. Mas, com Teogonia, eu diria que é um passo imprescindível!

Deixarei aqui duas indicações em formatos diferentes. O vídeo de Jaa Torrano, tradutor do poema, comentando sobre o escrito de Hesíodo e o livro de Jean-Pierre Vernant, estudioso conceituado, que narra, em uma linguagem muito mais acessível e bastante envolvente, a origem do universo grego e dos deuses. Enquanto o vídeo de Torrano pode funcionar como uma excelente introdução à leitura e até ao seu estudo, o livro de Vernant pode ser usado junto com Teogonia, ao longo da leitura. Recomendo ler os tópicos do poema intercalados com as narrativas de Vernant que tratam das mesmas temáticas, pois o que pode não ficar claro na leitura do poema, ganhará corpo com os conteúdos do livro.

Vídeo do tradutor comentando a obra

Acho que não há material de apoio mais rico do que esse vídeo do próprio tradutor comentando a obra traduzida! É um vídeo curto, onde Jaa Torrano fala sobre Hesíodo, um pouco da cultura grega da época do poeta, sobre as Musas, os deuses primordiais e o reinado de Zeus. Quase um resumão simplificado do texto. Se você está em dúvida em relação à leitura, recomendo que assista ao vídeo antes!

Livro: O universo, os deuses, os homens – Jean-Pierre Vernant


Vernant é uma das maiores referências quando falamos sobre a Grécia Antiga. Uma rápida pesquisa no google revelará inúmeros livros escritos sobre o assunto. Muitos de seus escritos são acadêmicos, apesar de terem uma linguagem de fácil compreensão. O livro indicado, no entanto, é ainda mais acessível, uma recomendação que faria a todos, sem pensar duas vezes. Ele foi escrito a pedido dos amigos de Vernant, para quem o autor narrava os mitos, também narrados a seu neto.

O livro conta com mitos desde o surgimento do universo, passando pela guerra de Troia e pelas aventuras de Ulisses, por Tebas e Édipo, até chegar a Perseu. Para acompanhar Teogonia, recomendo a leitura dos capítulos A origem do universos; Guerra dos deuses, reinado de Zeus e O mundo dos humanos, este último narrando a história de Prometeu.


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